I
Tá vendo esse piano forte?
Não sei como foi parar aí.
Deve ter se infiltrado sorrateiramente no apartamento
como a manhã.
Ou então, feito às vezes um passarinho,
deve ter aproveitado a desatenção
de uma fresta de janela.
Acho mesmo que tem um pássaro clandestino
refugiado piano a dentro.
Não parece ser forte, canta com desafino,
quem sabe um canarinho, misto.
Me indago, se não tivesse perdido a cauda,
seria menos franzino?
E tem passarinho sem rabo?
Passarinho de rinha, coitado, enfim aposentado.
Pedindo pra não ser tocado.
Pois, do contrário, é do tipo masoquista,
que só gorjeia se martelamos
com os dedos destros ou tacanhos
os seus bicos pretos brancos.
E se uma bala perdida
acertasse na sua cantoria?
Mas não me entendo dessas coisas de hoje.
As coisas que sempre me interessam
se perdem nas recurvas dos dias,
se é que ainda prosseguem vivas.
E assim, leio no banheiro
as revistas pré-datadas que há muito me mandaram,
bem ciente, como ex-jornalista,
que não existe coisa
como notícia de ontem,
e que o novo é o mesmo de sempre desde que decretaram
que os dias andassem, ao invés de se misturarem
se olhando parados como na eternidade.
De modo que isolado em meu retiro involuntário,
acabei sendo domado
por aquelas coisas que há muito me visitaram,
e depois nunca mais me abandonaram.
São meus cohabitantes, meus sublocatários.
E faço cara feia se me chamam colecionador.
Colecionador de coisas já fui
e se ainda fosse devia conhecê-las com minúcia,
mas meu colecionismo é de araque:
uma a uma não conheço nenhuma.
Meu gosto é do amontoado, do que não trouxe um nome.
E que, não tendo nome,
também não tem brios de homem,
de modo que se com elas cruzo acaso
e deixo de deseja boa-tarde,
não acham em meu descaso ocasião de se contrariarem.
E são tantas que tantos nomes numa língua sozinha
não se guardavam.
Então, assim redimidas do tempo e do conhecimento,
como os homens antes das línguas,
é como se sempre dormissem e leves de sonho voassem.
E se acaso apanho alguma em meio a num desses transes,
num desses relances
em você pergunta duas vezes
foi isso mesmo o que vi?
a sacana abre a pestana só de manha,
para depois se esconder de novo
e, como um passarinho surpreendido,
prosseguir seu voo
do ponto em que o interrompi.
Mas morta a cachorra, e eu e tua mãe separados,
tenho ao menos cultivado o cuidado em não deixar
alguma nova entrar.
Só o passarinho, mas ele não foi convidado.
Malas diretas, convites, mando o porteiro entregar
para os arrivistas do oitavo andar.
E essa é toda a caridade que tenho praticado,
e tanto mais desprendida,
quanto presto a gente que dela não necessita.
E de toda maneira, a casa assombrada de convivas esquecidos de partir
está sempre um tanto escura e um tanto cheia.
Tão escura que eu mesmo às vezes me apago.
Quando a Moninha estava viva,
costumávamos dar duas giras
em torno do edifício,
quando era a hora
de ele fazer os seus ofícios.
Mas silenciada a besta latidora e eu e a tua mãe estranhados,
retornados os vizinhos ao sossego de antes das pelejas e latidos,
não saio porque não vejo mais recreio.
Prazeres tenho às forras aqui dentro.
Mas muito do que vocês chamam
traste ou entulho
(eu sou pouco velho mas não todo surdo),
já pede substituição ou conserto,
como o ventilador, reparou?,
o pescoço torto como se sofresse
de um torcicolo ou de uma dor de dente,
e nem tudo dá só pra chamar
alguém subir pra arrumar.
É, acho que uma alguma hora
vou ter que sair e dar uma volta.
II
Mas entra, tira o agasalho.
O agasalho pinga porque pinga lá fora.
Põe ele atrás da porta.
Acordei agora e nem tive tempo de passar no banho.
Ou olhar pro céu e julgar do tempo.
Todo mundo reclama do tempo
o tempo inteiro,
deve ser só papo fiado,
senão alguém já tinha feito algo a respeito.
Faça chuva ou faça sol
é sempre a mesma ladainha,
as mulheres exconjurando o frio,
e os homens suando a cântaros.
Claro que tempo não é o mesmo que clima.
Não acredito nos catastrofistas,
mas é já hora de alguém ceder.
Não me lembro de ter chamado você,
mas que bom te ver, seja bem-vindo,
meu filho favorito! Shalom e mais tudo de bom.
O que te arrastou para esse bairro de velhos,
já esquecido até do google mapas,
mas sempre o primeiro alvo do telemarketing
de seguro, e trajeto predileto das ambulâncias?
Terá confundido meu esconderijo
com a seção de achados e perdidos?
A chuva fina entrou pingando contigo dentro da casa.
E é por sua graça que sabemos
que ainda é outono, se temos
compartimentos seccionando o ano
como tínhamos antes do aquecimento.
E o casaco pendurado atrás da porta
lembra uma folha que não tarda
em ser também arrastada pelo vento.
Mas não tão cedo,
te acomoda e fica um momento.
E ainda assim pinga. Você tem goteiras!
Mas será que pinga através do crivo
das frondas do outono quase ido
algum raio de luz que penetrasse
entre as gerações de folhas mortas
e com sua força renovadora aclarasse
retalhos inteiros da nossa existência
abafados entre as camadas do tempo?
É um poema meu, ou de algum outro boêmio,
diz do que perdemos, menos que para a morte,
que para o esquecimento.
Há quem diga que morremos da mesma morte,
seja no corpo, seja na memória dos outros.
Os cristãos acreditam em salvação pelo corpo.
O que seria bom, se não fosse simplesmente incrível.
Mas os gregos, menos autotransigentes,
acreditavam na salvação pela memória.
Consolação de segunda
e de segunda mão essa salvação pela glória,
mas pelo menos possível de fazer.
Imagino se os mortos pudessem nos dizer
o que pensam a respeito.
Estariam tão cobertos de folhas
que sua voz não se distinguiria daquelas das árvores.
Por isso, se ouço o gemido do vento
e com ele o acompanhamento de instrumentos
que sussurra nas folhas,
posso jurar poder nele discernir às vezes,
as distintas vozes, as entonações, os maneirismos,
de tantos amigos que já são sombras.
Acho que sim, para nos preparar contra o olvido não é preciso
como um faraó juntar muita coisa,
não é preciso acumular muita força,
às vezes basta
um termo ou um jeito de falar parecido,
um sonho na sesta do domingo,
às vezes
uma visita inesperada.
O primeiro deus imortal
teve que devorar o tempo
para não ser comido.
Mas nós somos o seu alimento de direito,
e só a lembrança nos salva.
Todo mundo reclama todo o tempo do tempo,
é preciso alguém dar um jeito...
Mas deve ser triste o tempo,
o trabalho da desmemória,
deve ser triste como perder
aquilo de que não se gosta.
Porque o remorso, o irmão do meio,
sempre meio esquecido,
o remorso ainda é melhorzinho que o olvido.
E lembrar não é só coisa de velho.
Aliás, é velho quando se tem por conselheira
uma memória dormideira.
Nem é hobby de colecionador.
A memória é o humano trabalho
de abrir buracos na trama dos eventos,
deixando escapar um cheiro,
por exemplo, cheiro de café coado
sobre o fogão a lenha, e o sabor
daquelas manhãs tão frias
que me crispavam os músculos
nas costas, e, menino, como doía!
Ou melhor, dói ainda, o prego na carne na parede.
E as folhas da mata retesas pela geada
afiavam as agulhas do vento.
E a dor cada vez mais forte,
e o cheiro cada vez mais intenso,
e o buraco cada vez mais fundo,
e sempre a capa mais rasa,
e sempre a trama mais esgarçada,
até que da trama não resta nada.
E nos sejam devolvidos mundos inteiros que perdemos
ao deixarmos de esquecer.
Será quem sabe a eternidade?
Ou um tempo verdadeiramente novo sem eternos retornos.
Se for, combinamos de ir juntos.
Quem sabe a idéia empolga
e então deixe o mundo de ficar dando voltas
em torno do mesmo assunto.
III
Mas não tenho medo da morte, nem nunca
pude crer em deus.
Diz que ele escolhe os seus,
e eu devo ter ficado do lado
de fora da coleção.
Também falam que deus prova igualmente
o servo e o que não crê nele.
Se for verdade, me espanta a idéia de ter carregado uma escuta
sem saber, e mesmo nos momentos de maior loucura.
Tanto pior ou melhor, tenho vergonha
de pedir para deus as minhas coisas,
acho que não mereço
ganhar nada sem meu trabalho,
e se faço algo errado,
procuro eu mesmo compensação.
Então deus pra mim não ia servir pra muita coisa.
Quem sabe deus esteja mesmo presente,
só não queira perturbar, quem sabe até nos ouça chorar
em segredo, mas somente se lamente
por sermos tão ridículos,
e no fim nada possa a respeito disso.
Ah, eu tenho uma teoria nova, também inacreditável,
mas que faz sentido.
Sustento que deus é um economista
e faz conosco experiências de escolha racional.
Não temos como não ser racionais e não ter apego
a um prato de comida, a uma vida mais destendida,
e assim até um rato racionalmente esconde dos outros um resto de comida.
Mas então deus vem e nos bota amor
e nos vê fazer as coisas mais sem sentido,
doar o que não foi merecido,
perder o que não foi perdido.
Ele deve ser um bocado sábio,
mas mesmo assim se atrapalha com a matemática
perturbada que permite entender
o que em nós é tão extraordinário a ponto de nos levar
a agir sempre do modo menos sensato possível,
ainda que pressionados por um mundo de escassez,
no qual de cada um de nós só há de se esperar
que faça racionalmente o que lhe apraz.
Porque sensato apenas nesta vida
é a opção de ser egoísta.
E assim é como se somente o amor, esse arroubo da irrazão,
nos libertasse da necessidade de autosserviência.
Lembro da loucura exemplar daquele santo budista,
que para dar de comer ao cão também faminto,
cortou e lhe serviu da própria carne...
E no fim de tudo a conclusão da pesquisa
sobre o amor, que nos faz sermos quem não somos,
ser o que não podemos ou não devemos,
ensina ao deus da razão que não existe verdadeiro saber
quando desprovido de compaixão,
e que nos faz, porcos de ensaio,
mais nobres que as pérolas que nos jogaram.
Te parece cruelmente bárbaro?
Mas eu já tinha prevenido
que segundo a minha premissa
deus é um economista...
E isso é o quanto me arrisco a falar sobre ele,
parece que medram cada vez mais seitas de última hora,
quanto mais se explica o mundo menos se entende!,
algum dia uma delas vai acabar topando por acaso cego com a verdade,
mas desconfio que seguirá andando.
Como pedir ao cego que não veja?
Mas não sei bem, faz tempo que não vou lá fora,
quando tiver de ser,
vou dar uma volta.
IV
Tenho escrito. Admito:
falei tudo isso porque só agora me dei conta dessa vocação,
extemporaneamente ou por ser ela mesma temporã:
a de colecionador
mas não de coisas, de memórias.
Achei nesse monte de montanhas caóticas
uns remotos cadernos de colégio
em que garatujei meus primeiros versos.
Para mim, aquelas poesias eram a coisa mais linda,
eram capazes, imagine se fosse verdade...,
de justificar uma vida.
Meus sonhos tiritavam dentro daquela mochila.
Hoje sou todo prosa,
gosto mesmo é de contar histórias,
e nos meus romances contei memórias
de outra gente, inventadas ou plagiadas da vida.
Mas me ocorreu num desses dias
que nunca falei sobre a minha infância.
E alguém escreveu, salvo engano,
o Paulo Mendes Campos, que a infância
só existe para ser recontada.
De criança fiz minha primeira coleção,
bem antes de virem os selos, as miniaturas, os amoricos.
A primeira coisa que colecionei
foram pinheiros.
Pinheiros que eram meus,
porque só eu sabia o nome deles.
E um ano de neve em Curitiba,
a pequena casa de madeira,
minha horta de morangos,
o zoo e a lenda de uma leoa perdida,
meu pai janota e deliciosamente cínico,
minha mãe telepática,
minha irmã boa boa e os seus bichos,
estão todos aqui entre as minhas coisas
e compõem o arcabouço profundo dos eventos
no qual os demais apenas foram se encaixando.
No mais, as alegrias de uma vida foram indo ou ficando.
Você me conhece, não sei me queixar,
nem gosto de falar de coisas tristes.
Mas é difícil ser sozinho.
É difícil, mas se aprende.
Não sinto falta de mulher.
E para mim, a tua mãe foi sempre
(e deve sentir esquisito para você ouvir isso,
porque você tem nela amor de filho),
sempre foi a pele, o gosto,
o ideal de matéria a que eu sempre aspirei
e porque tão carnalmente perfeito
foi também o metro do desejo
com que pesei às vezes a contra-gosto
todos os meus outros encontros.
Estranho que hoje nos desencontramos
e sejamos como estranhos.
Mas saudades da felicidade que tivemos
não tenho, porque não mais sinto
necessidade de felicidade.
E felicidade de verdade só existe na carne,
não no espírito.
Nem é a felicidade ou a necessidade o motor da gente.
O que move o homem é não poder não ser,
simplesmente.
E continuar a ser,
sozinho ou dando voltas.
Agora, o que mais corrói,
não é que a Moninha me abandone,
mas que às vezes deslembre seu nome.
Fora com os fantasmas!
Ou eles ou eu saio de casa.
Quem sabe numa manhã mais clara.
V
Mas se é menos sozinho
quando se tem amor num filho.
Mesmo quando mora longe,
mesmo quando se esconde.
E alegria você sempre me trouxe,
mesmo sem querer.
Lembro você rapazinho,
quando passava e as vizinhas
se cutucavam, como é bonito!
E que orgulho besta esse
de ter um filho que é bonito.
Mais que ele ser um erudito,
um doutor ou um cara bem-sucedido...
O que nesses tempos estranhamente quer dizer
ser ele rico, me pergunto por que,
não teria tido êxito a despeito
de ter se tornado um homem de bem,
embora sem cultura ou dinheiro ou título?
Mas voltando a meu orgulho besta por tua beleza,
talvez seja porque mérito
maior que o de ter mérito
é não precisar dele e ganhar do acaso
um bom coração sem dar-se ao trabalho,
e a beleza por recompensa, mesmo que de maneira
e não também de aparência.
Mas você também teve os seus casos,
tristes ou ditosos,
e carrega nos traços os cursos do amor,
caminhos de serpente, sempre
tão tortuosos, que entortam a gente.
E de novo, que maior bruxo que o amor?,
repito, o pai do impossível,
o amor que conseguiu transpor
aquela carne tão dura que eu era
numa coisa como esta, flácida e terna...
Sempre digo que é você
meu filho favorito, não porque não tive outros,
mas porque foi sempre o mais merecedor,
e mais bonito na essência que oculta humilde
que no físico,
mas este não dá para esconder,
então ao menos não te cabe ser tão tímido.
Não depois dos trinta, é coisa de maricas.
Ah, desculpe, não quis ofender,
não quis dizer isso, retiro,
ou melhor, foi isso mesmo, seu bundão,
sempre respeitei sua opção,
e não é agora que vamos começar com firulas,
isso nunca foi caso para frescuras,
e os últimos trocadilhos
eu também não retiro.
A saúde vai mais ou menos,
sempre um pouco mais para menos,
mas, já disse, não guardo receios.
Antes de morrer, o Leminski
escreveu que a vida tinha virado moléstia crônica.
Ainda mais nesses tempos de medicina biônica.
Viver e viver e mais viver,
viver é vício que fissura.
E depois de viver tanto, viver não tem mais cura.
Já não há como perder o desvario de viver.
Perdida sem culpa nenhuma,
treme doente de medo a morte.
Pra quem sobra, boa sorte.
Ao invés de ficarem se perguntando
se há vida depois da vida,
deviam instituir uma pesquisa
sobre a sobrevivência do corpo
à morte da consciência.
Isso sim dava uma puta ciência.
A exata ciência de que se precisa
para compreender os nossos dias.
Rsrsrsrs
Que dia é mesmo hoje?
Ah, é segunda.
Segunda-feira, segura a fera.
E o fórum, em pé de guerra?
Olha o sol, é o sol de novo,
pulando pela janela.
Quem diria que não faz muito
parece que chovia em todo o mundo,
até você, lembra?, até você chovia!
E o sol vai separando cuidadosamente as coisas,
como as figuras sobre um álbum,
vai inscrevendo na legenda nomes de batismo,
redimindo o que eram meros feixes de indivíduos.
E cada um na sua solidão obrigatória
parece comburir
na luz que lhe é própria.
Sempre vai existir a beleza,
pois tudo almeja a escapar de si, mas sem se distrair,
tudo almeja a fundir-se, mas para falar mais de si,
como num dia de sol.
Ai, aquela manhã cinzenta parece ter sido ontem,
como o velho de ontem já parece tão longe.
E o de amanhã, então,
quem vai conseguir enxergar a tamanha distância?
É, faz muito,
muito tempo que não vejo o mundo
do lado de fora do esquadro
desta janela, deste quarto,
acho que já está na hora,
como está chegando a hora
de você ir embora.
Então, levanta,
apanha tua manta,
vamos sair
e dar uma volta.
A selection of my love poems in English, auf Deutsch, en francais, en espanol, in italiano and em portugues. Por favor, abaixo há a lista completa dos poemas. Peço que os busquem no search engine on this blog para lê-los na referida ordem. Obrigado e boa diversão.
APRESENTAÇÃO
Por que Poemas de Amor?
A presente edição reúne todos os poemas de minha autoria que têm por objeto o amor. Estão divididos em partes que correspondem a certa perspectiva ou metáfora sobre o amor tal expressa no título do capítulo. Correspondem a um período de vinte anos de trabalho poético, o que talvez justifique o volume alentado do livro.
Quando comecei a escrever poesia, no início dos 90, cometer poemas “sentimentais” era visto como um sacrilégio contra as regras do então incensado cânon (o "neo-parnasianismo chique", na cunha do Paulo Leminski). Por isso, em meu segundo livro, como num desafio quixotesco à la Rastignac, resolvi me concentrar nos assuntos interditos, de matriz erótica ou política. A maior parte dos poemas aqui compilados pertence a esse período (2003-2006), mas prossegui escrevendo sobre esses assuntos, de maneira que o leitor também encontrará aqui peças recentíssimas. Claro que hoje não ousamos nos dar mais ao luxo de sermos ingênuos a ponto de sustentar que existam assuntos mais ou menos dignos da poesia, mas suspeito que os mesmos preconceitos subsistam, embora de forma menos ostensiva. Então o presente livro prossegue desafiador e a contra-pelo.
Razão, Emoção e Inspiração
Peirce, o fundador sa Semiótica, assere que toda percepção ou emoção se dá na forma de raciocínios hipóteticos (hoje diríamos no modelo da inferência da melhor hipótese), de maneira rigorosamente equivalente a todo o resto de nossa atividade consciente. Isso acabou corroborado pela pesquisa das neurociências dos nossos dias. Distinguir razão de emoção como opostos é de fato um equívoco, como está plenamente comprovado pelos recentes aportes experimentais. A emoção não é senão um modo de pensamento abdutivo em curto-circuito, que apenas se dá em nível inconsciente e automático. Nosso cérebro recebe uma cifra de milhões de informações a todo segundo e as processa racionalmente, mas tamanha é a riqueza desse tesouro de dados que somente sete ou oito peças de informação acedem ao patamar da consciência dita de acesso. Todo o excedente, bem como a memória meticulosa de tudo o que experienciamos, conforma a mina inesgotável do que os antigos chamavam intuição ou inconsciente.
Não existe boa poesia sem inspiração. A inspiração não é apenas a primeira dádiva com que as musas nos agraciam do alto, restando-nos, como afirmou Cabral, 95% de trabalho corporal. Em primeiro lugar, a inspiração nos vem de dentro, daquela infinita fonte subconsciente de sensações, conhecimentos e metáforas que de vez em quando nos surpreende com a força invencível de sua sabedoria e beleza. Em segundo lugar, se é verdade que um poema nunca nasce pronto de uma só vez, ele precisará da confluência de muitos outros momentos de inspiração, que vão se complementando até dar origem a um poema digno do nome. Escrever um poema inteiro sem o aporte de alguma inspiraçao ou completar a sua contribuição inicial com retoques feitos a mão seca, sem o motor da paixão, é ledo autoengano. Poesia escrita de modo automaticamente consciente nunca resultou em coisa de real valor artístico. Decerto um software com poderes combinatórios mais sofisticados e com um repertório maior que o nosso pudesse produzir coisa melhor. Com a perspectiva ganha com o afastar do tempo, podemos ainda atestar que o resultado estético é ainda pior quando a consciência se traveste de automatismo inconsciente, isto é, ao se valer de um apelo a um inconsciente falseado em consciente. A esse propósito, é curiosa a relação inversamente proporcional entre os aportes da poesia de manifesto para a história da arte e suas contribuições para a poesia propriamente dita. O dadaísmo, o surrealismo heroico e outros "ismos" pertencem mais à história da poesia do que à poesia propriamente dita. O valor artístico de suas contribuições foi praticamente nulo. Não espere encontrá-los numa boa antologia.
A conclusão é que a poesia corresponde exatamente ao que sempre intuímos a seu respeito, ou seja, à interação entre razão e emoção, a despeito das repetidas e frustradas tentativas de se reinventar a roda.
A Arte da Metáfora
Sou um polemista diletante e, já que nos enveredamos por esse caminho, por que não aproveitamos o ensejo para prosseguir martelando outros ídolos?
Pois, assim como não há diferença ontológica entre razão e emoção, a não ser o fato de esta ser somente fenomenalmente consciente e estar acompanhada de uma descarga hormonal graças à qual consegue nos levar a escalar prontamente uma árvore para que não sejamos devorados pelo leão que decidiu fazer seu passeio matinal por estas bandas, salvando-nos alguns segundos preciosos durante os quais estaríamos de outro modo calculando com nossos parcos recursos cognitivos conscientes a velocidade e a trajetória da fera, tampouco existe qualquer diferença metafísica, ontológica, semiótica, cibernética, linguística ou patafísica entre metáfora ou símbolo ou símile ou analogia. Há somente uma diferença sintática bastante secundária, como veremos adiante. Até Benjamin, no seu ensaio sobre o drama alemão, tentou discriminar as duas coisas: então o equívoco de fato parece renitente a ponto de merecer que o desfaçamos, mas para isso bastarão uns poucos apelos à consistência.
Toda linguagem somente pode operar como instrumento de comunicação porque está dotada de dois recursos geniais. O primeiro chama-se recursividade ou redundância. É a chave sintática da linguagem. Através desta somos capazes de produzir um universo ilimitado de elocuções a partir de um número limitado de regras e recursos. Cumprem tal papel uma gama de instrumentos como conectores, pronomes relativos, sufixos, afixos e via. Um exemplo particularmente lúdico da aplicação da redundância são os versos infantis sobre a ida ao mercado e suas variantes: "meu pai foi ao mercado e comprou um cachorro que tinha comido um gato, que tinha devorado um rato... ”.
O segundo recurso genial constitui a metáfora. Quem lembra do conto “Funes, o Mnemônico” de Borges, sabe que uma língua adamítica inteiramente construída com nomes próprios resultaria impraticável. Precisaríamos de uma palavra distinta para dizer cada cifra na série infinita dos números. Assim, poderíamos batizar o algarismo 333 de “ptxws”, e 67.897 poderíamos chamar “yy”, e, obviamente, teríamos de saber de cor toda a série para poder falar sobre números. Claro que na linguagem real utilizamos expedientes de redundância para nominar os números, derivando todos os seus nomes de alguns números primários. Não fosse isso, teríamos que dar um nome distinto a cada alfinete e a cada cadeira que existem ou já existiram no mundo. Essa em que você está provavelmente sentado, chamaríamos de “fofinha”, mas aquela em que você assistia às aulas da segunda série da escola fundamental não era nenhuma fofa, mas quem sabe “aiquesaudadesdaminhacaminha”, pois é sabido que as escolas fornecem assentos duros aos alunos justamente para evitar que adormeçam...
Felizmente, não é assim que a linguagem funciona. O coração semântico da linguagem é a metáfora. Por meio dela aplicamos um mesmo nome a uma série potencialmente infinita de indivíduos diferentes, seja porque compartilham uma forma ou uso comum (metáforas do subgênero “analogia”, assim, os objetos de sentar chamamos “banco” caso não tenham espaldar, se o possuam, serão ditos “cadeiras”), sua pertinência a uma família ou espécie natural (metáforas do subgênero “instância”, como ouro e passarinho), seja por uma comum referência indexical do tipo espaço-temporal (metáforas do subgênero “metonímia”, como "curitibano" ou "trintão"), seja enfim por força de uma regra arbitrária ou convencional (metáfora do subgênero “símbolo”, como “galo” para francês ou, se decidíssemos, e algum idiota já sugeriu, chamar “grue” o universo correspondente às coisas azuis antes de 1999 e somente a partir de então as coisas verdes). E é também desse modo que transcorre a vida das palavras, cujos significados se ampliam ou deslocam por relações de similaridade ou contiguidade ou de semelhança semântica ou sensual, de modo que hoje dizemos “botão” para as coisas que nas máquinas se apertam porque pareciam com os botões vegetais. Outro exemplo que me ocorre é a palavra “humus”- terra em latim, mas que em português passou a designar “adubo”.
O famoso símile não é senão qualquer metáfora dos tipos elencados acima, cujo emprego foi sintaticamente explicitado pelo uso de um marcador ou conectivo de similaridade (“como”, “como se”, “igual a”, “parecer”, “lembrar”, “semelhar”, “tal”, “que nem”, “tipo” e assim por diante), explicitação esta geralmente desnecessária (a não ser para fins de ritmo melódico ou contagem silábica) uma vez que o leitor, sendo um ser racional dotado das nossas mesmas faculdades semióticas e cognitivas, e, por conseguinte, tão experto na língua quanto nós, certamente prescindirá de tais muletas para compreender que quando dizemos que “a espada sangrou”, estamos implicando que ela feriu alguém e não que ela mesma tenha sido acometida de uma súbita hemorragia de modo que tivéssemos que abalar-nos em seu auxílio levando-a a um pronto-socorro.
O papel dos poetas é andar nas encostas dos abismos da linguagem, procurando descobrir metáforas novas e similaridades despercebidas. Através da poesia, a linguagem pode experimentar e se enriquecer. Se a poesia é a arte por excelência da linguagem, isso se dá essencialmente porque a poesia é sobretudo a arte da metáfora.
O Sono dos Dogmas Recebidos
O acaso me dotou do dom das línguas (e nem era pentecostes), de maneira que tenho escrito poemas simultaneamente em alguns idiomas. Com base nessa prática, posso testemunhar, contra a tese quineana da indeterminação radical do significado (assimilada mesmo que parcialmente pela tríade concretista), que os meus versos em co-versões e traduções compõem inegavelmente os mesmos poemas, malgrado expressos em códigos diferentes. Por isso concluo que poemas são feitos de ideias. E não fossem feitos de ideais, não seriam sequer comunicáveis entre dois falantes da mesma língua, aos quais decerto correspondem idioletos distintos. O uso sensorial do significante para efeitos rítmicos (rimas, aliterações, assonâncias e outros) é parte inafastável do manejo estético da linguagem, mas desde que seu abuso não estorve ou impeça o escopo da comunicação. Quando usados como fim em si mesmos, parecem-me desnecessários e supérfluos, ou talvez já não pertençam à esfera poesia, mas das artes visivas ou sonoras.
É ilustrativo que Cabral de Mello Neto, um valéryano campeão de certa terapia da poesia que o levava a defender a primazia do significante, a supressão da emoção e o banimento da metáfora, tenha justamente atingido seus momentos máximos apenas quando se deixou levar por um emotivismo altamente galvanizado (me refiro ao lindo “Morte e Vida Severina”) ou quando se inspirou e levou até as últimas possibilidades o uso de uma metáfora avassaladoramente brilhante (nos notáveis “Mulher e Casa” e “Tecendo a Manhã”). O resto é de uma repetitividade lamentável, salvo os seus livros de juventude, lindamente surrealistas. O próprio Drummond se deixou levar por esses preconceitos, felizmente após já ter escrito suas obras primas “A Rosa do Povo” e “Claro Enigma”, donde o tom insípido e anedótico de sua poesia posterior, que eu chamo jocosamente de “recepção drummondiana do patati-patatá cabralino”. Ao revés, aqueles poetas que não se permitiram conduzir por tais fórmulas assépticas, como Jorge de Lima, Murilo, Ferreira Gullar, Paulo Mendes Campos e o esplendoroso Lêdo Ivo, foram injustamente castigados com uma apreciação crítica subalterna. A poesia não precisa de terapêutica. A poesia precisa ser levada a sério.
Por razões próximas, tampouco acredito em poesia hermética. Um texto abstruso e impermeável fracassa como objeto de linguagem, cujo propósito é a entrega de uma mensagem. Todo texto é inevitavelmente polissêmico e se configura através da contribuição recíproca de emissor e recipiente. Isso é uma trivialidade. No entanto, ausentes quaisquer atributos passíveis de compreensão intersubjetiva, constituirá um mero ruído, carente do conteúdo que lhe permitiria ser objeto de algum juízo estético objetiva ou intersubjetivamente válido. Sem conteúdo acessível, estável ou não, como pode um texto oferecer parâmetros para uma apreciação crítica? Poupemos os leitores de tais engodos. Sejamos honestos. Sejamos claros. Ordem direta, sempre que possível. E, como ensinava Borges, evitemos os sinônimos preciosos quando tivermos à disposição algum termo mais comum e preciso.
Faço essas observações no exclusivo intento de repudiar qualquer discriminação entre razão e emoção, símile e metáfora, significante e conteúdo, arbitrariamente traçadas de maneira a privilegiar um dos extremos da dicotomia em relação ao outro. São inaceitáveis pelo simples fato de fundarem-se em superstições e na recepção acrítica de preconceitos desprovidos de qualquer embasamento lógico ou científico. Imagino que, a este ponto, tais questões já pareçam há muito superadas. Mas observo ainda certo viés de leitura “canônica” sendo correntemente praticado, mesmo que de maneira sub-reptícia. Assim, meus vários jeitos de escrever versos podem parecer estranhos a certos poetas e críticos, e espero a esse respeito que os esclarecimentos deste posfácio possam modestamente contribuir para ajudá-los a despertar do sono embrutecedor dos dogmas recebidos.
Mas Quem é o Verso, Afinal?
Os gregos diziam que a vocação de um poema é a de tornar-se memorável. Isso não perde o sentido só porque galgamos de uma tradição oral para o registro escrito e agora virtual das nossas composições. Um bom verso é como um meme, que fica zumbindo no ouvido a despeito de nosso desejo de atirá-lo ao poço do olvido. Na minha visão, num poema você pode contar uma história, dizer o que você ou outra pessoa pensa, passar uma receita de caruru, em suma, o que quer que seja, contanto que o faça através de um uso notável de palavras, seja pela sua acepção ou conteúdo insólito e/ou por seus aspectos sonoros ou sensuais notáveis. Cada unidade de ideias e palavras que compõem um tal texto chamamos verso, seja ele do tamanho que for. Importa é que sua qualidade extraordinária o torne particularmente idôneo a aderir à nossa memória, de forma a poder, por exemplo, ser posteriormente recitado com certa facilidade, no todo ou em parte, mesmo à falta de suporte escrito.
Memorável é aquele poema em que as ideais e o seu veículo, as palavras, estão ordenadas de um jeito que refoge à ordinariedade das formulações verbais que corriqueiramente usamos, e cuja rareza (e não necessariamente estranheza) os faz preciosos. Trazendo a metáfora aos limites de suas possibilidades, os versos renovam a linguagem e ganham, em troca, a memorabilidade. Os melhores poetas são, portanto, aqueles capazes de alcançar de modo inconvencionalmente frequente tais constelações incomuns (noto certo kantismo nesta última observação). E estas serão tanto mais surpreendentes, quanto mais paradoxalmente próximas da linguagem comum.
Por outro lado, como dizia o próprio Ezra Pound, o profeta dos moderníssimos, corroborando o que eu afirmei mais acima sobre a tão difamada inspiração, “só a emoção é o que fica”. A explicação neurofisiológica óbvia, se me permitem outra digressão à la fringe-science, é que a memória opera seletivamente através de critérios de emoção. Quanto mais avassalador um acontecimento, maior sua fixação; quanto mais banal, mais vulnerável ao esquecimento.
A maior prova de que uma arte que a toda hora uma nova cassandra declara morta prossegue sim-senhor bastante viva, e atinge inclusive o seu momento mais exuberante, é o fato de eu me divertir sempre mais com os meus contemporâneos do que com gênios que escreveram há duzentos ou trezentos anos passados. E, mais que todos, com os brasileiros. Talvez esse o lado positivo da estreiteza de nosso “cânon”: tornou escrever poesia mais difícil, e os poetas mais ciosos de qualidade. Sem dúvida, fizemos progressos fatais, os quais remoldaram ou esclareceram nosso próprio conceito de poesia, de sorte que podemos produzir lírica mais conscientes sobre a sua natureza e os seus limites, se os há. Claro que nisso jogaram papel central o redentismo dos românticos e o senso de experimentação e pesquisa dos modernos.
Mas por que não mencionar também a contribuição mais modesta e contudo igualmente fundamentalmente transformadora das inovações técnicas, as quais aumentaram os canais de expressão, como a internet, e que facilitaram a edição e impressão de textos? A esse respeito, eu, que participei da transição das máquinas de escrever para os processadores de texto, tenho bem presente a vantagem descomunal que os escritores de hoje têm devido à possibilidade ilimitada de ajuste e correção com que esses programas nos proveram, em confronto com os recursos indigentes como rabiscos no papel e mata-borrões dos antigos.
Sobre o Autor
Depois dessa defesa do amor e da liberdade de poder expressá-lo das mais variadas formas, cumpre frisar que o amor, quando eleito como assunto de um texto, não gera necessariamente poemas de cunho emotivo. Se não há limite entre razão e emoção, por que não poderia um sentimento ser tratado sob uma perspectiva racionalizante? Assim, aqui abundaram também os poemas cerebrais. Os apologéticos e os elegíacos. Os graves, a par dos sardônicos. E os eróticos, ao lado dos líricos. Poemas conceituais e triviais. Houve aqueles escritos em linha confessional, mas alerto que, como nos demais, tudo aqui é finto, e mais verdadeiro, justamente por isso. Ouvem-se poemas em outras vozes. Viris, homoeróticos e femininos. Versos em ritmo antiquado, e outros destrambelhados. Enfim, ofereci uma seleção de poemas para todos os gostos e nos mais variados estilos. Nunca me contentei em ser repetitivo: talvez só quando não restar nada a ser dito, a vida finalmente poderá ter início. Então, let's go! Por outro lado, se a vida só bastasse, não havia a arte...
Sou um humanista e adorador dos animais, e um realista pragmático intransigente. Acho Wittgenstein e Nietzsche dois perfeitos oligofrênicos, porém sou, como estes inconsistentemente se criam, um vitalista, mas sem ceder ao conformismo: "amor fati ma non troppo". Acredito justificadamente em justiça distributiva e nutro horror a todo tipo de relativismo ou irracionalismo que, sob a máscara da tolerância e indulgência, consente com as mais graves violações éticas e crimes contra a humanidade. Não acredito no "a-priori" sequer como licença poética, mas no acúmulo de explicações através do raciocínio hipotético controlado pela observação: mesmo os princípios de lógica aprendemos pela experiência fenomenológica com o mundo e estão sujeitos à revisão conforme avançamos no nosso conhecimento, como humilhantemente nos ensinou a física quântica. A verdade é uma dama difícil, demora para ceder qualquer pouquinho e sempre exige o percurso mais oneroso. Penso que as verdades parciais a que tentativamente vamos acedendo não são meros construtos, mas efetivas descobertas. Ficaria feliz pra caramba se houvesse uma vida depois desta e não fecho os olhos para a pletora de evidências a esse respeito, mas minha conclusão parcial vai provisoriamente pela negativa. Por isso vivo um dia depois do outro e a cada coisa dedico o carinho de que é merecedora por sabê-la irresgatável e única.
Concluí meu primeiro livro aos 21 sano. Então decidi viver para ter sobre o que contar. Eu e a poesia reatamos quando eu tinha 28, numa lua de mel em Berlim, e vivemos felizes durante alguns anos. Fui desempregado e poeta em tempo integral por outros tantos. No fim de tal período, a convivência se tornou insuportável (sempre os problemas de grana), e eu e a poesia nos separamos. Desde então, já há dois ou três anos, estávamos conversando apenas esporadicamente até que, no fim do último ano, uma espécie de surto maníaco me presenteou com mais dois livros, episódios dos quais também inseri nesta reunião.
Agradeço a todos os que me auxiliaram nesta empreitada. Dizem que favores só se pedem a amigos. Mas eu não sou nem de pedir favores, como não sei falar de coisas tristes. Então lhes devo minhas lisonjas em dobro, pois se esforçaram em ouvir através do meu silêncio. Parafraseando Proust, a vida intelectual é a parte mais eventuosa e rica na história de um homem, assim, devo estas linhas como também a maior parte de minhas alegrias e agruras aos meus tantos mestres, dos trágicos, Diógenes e Platão, passando por uma constelação de nomes que não caberia enumerar aqui, por razões de extensão e justiça, até chegarmos a meus habílimos colegas contemporâneos.
Aos que me desconheciam e agora me leem, espero poder oferecer algum prazer, lembrando que há vários tipos de prazer, como há várias camadas em nosso ser, e que não nada há de mais aborrecido e plano que um conviva permanentemente feliz. Um pouco de cada coisa deve ser aproximativamente a receita para uma dieta equilibrada. Em contrapartida, ficarei contente com as suas objeções e críticas construtivas ou nem tanto.
Quantos aos erros, me arrogo a sua propriedade inalienável e exclusiva, sublinhando que, embora seja tudo artifício em poesia viva, não beletrística, busca-se ecoar a língua oral verdadeira. Por isso, não esperem que eu ceda às regras da vetusta gramática de estilo. Ao contrário, me atenho aos modos reais de fala no português nacional, único, aliás, sejamos honestos, dotado de chances de sobreviver nos próximos séculos. Só me servi de ênclises pronominais quando soam bem na prosódia brasileira, ou de força jocosa, ou senão, por último, por licença poética, em razões de sonoriedade ou gestualidade. Como é sabido, tais regras de estilo aceitas acriticamente incidem no equívoco de desvirtuarem a fonética do português americano, constituindo em face deste um puro sistema de erros prosódicos e sintáticos. As ditas enclíticas em português brasileiro podem ser átonas, reduzidos ou tônicas conforme a tenção do falante e, portanto, é inconsistente forçá-las a caber num único conjunto de normas que acabaria moldando numa única fôrma coisas que são fonicamente distintas. Do mesmo modo, empreguei o pronome brasileiro "você" junto com correlatos pronomes pessoais dativos e acusativos e genitivos de segunda pessoa, tanto para evitar a ambiguidade com sujeitos de terceira pessoa, quanto sobretudo pelo fato linguistico inconstável de que é assim que falamos no Brasil. Também usei "você" com imperativos de segunda pessoa, pois os de terceira só empregamos quando queremos parecer formais. Mas escrevi muito poemas com "tu", que não uso de hábito na minha particular produção oral, seja para produzir peças que remandem à tradição, seja para conferir ao verso uma locução simplesmente mais estranhadora ou altaneira. Acredito que verbos como "custar, faltar, sobrar" e tantos outros são impessoais na regra gramatical dominante e mais legítima no Brasil. Usei pronomes possessivos indiferentemente de serem precedidos ou não de artículo, embora em Portugal a regra difira da facultatividade que a esse respeito comanda na variante do Brasil. Só me servi de vírgulas para separação de adjuntos adverbiais no intuito de evitar ambiguidades ou para inserir uma cesura no verso. Nesse tocante, seu uso sistemático não me parece obrigatório e talvez resulte mesmo equivocado empregá-los sistematicamente, pois terminam por poluir visualmente o texto de sinais diacríticos ilegíveis, imiscuindo pausas inexistentes na língua oral e desnessárias à recitação oral ou interior, a contrassenso da vocação declamatória de todo poema. Enfim, levando a termo meu tom polêmico, a dita gramática de estilo é tão patentemente defeituosa e inconsistente, seja no atinente à sua própria lógica (?) interna, seja em virtude de seu afastamento da prática genuína da língua falada ou escrita, que minha inclinação cientificista me impede de levá-la a sério.
Desde a cidade do Rio de Janeiro, aos 5 de março do ano de 2011 da Era Comum.
P.S. Há uma famosa trilogia de Kierkegaard que também se chama "As Obras do Amor", e que são um clássico da Filosofia do Amor. Li-as jovenzito, e me pareceram egoisticamente carolas e platonizantes, a despeito de todo o seu louvor ao altruísmo. Explico a seguir detalhadamente por quê. Definitivamente, não é esse o tipo de abordagem privilegiada nestes meus textos, que celebram todas as formas do amor, seja o erótico, seja o filial, seja o caritário, sem privilegiar um em relação aos outros, a um tempo erguendo-o como o único amor "de verdade", e denegrindo por conseguinte os demais a formas sujas, imanentes à nossa animalidade ou configuração genética e, por isso, menos "humanas". A essas alturas, as neurociências já comprovaram que o altruísmo também está gravado em nossos genes, assim como no de incontáveis outras espécies animais, de modo que o altruísmo não pode sequer ser sustentado como unicamente humano ou racional ou cultural ou civilizatório, de modo a marcar uma fronteira que eticamente nos colocasse acima da natureza e seus fatalismos.
Minha leitura dos filósofos é filosofante, e não me interesso minimamente por uma História da Filosofia do tipo "quem foi, onde viveu, que influências pessoais teve": nunca procuro especular sobre as intricadas vinculações existentes entre um ensaio filosófico e a biografia de quem a escreveu. Nesse ponto, sigo com um grão de sal a ordem derridiana radical segundo a qual "il n'y a par de hors-texte". Com ela concordo parcialmente, pois também é verdade que não há texto que ressoe desde um vácuo sem contexto. Mesmo assim, a máxima me previne de viajar em especulações psicologizantes inúteis. Não sou filólogo, só busco nos filósofos o que objetivamente pode ser útil na solução dos novos e velhos problemas dessa disciplina parasítica, a Filosofia, que carece de discurso próprio e que se alça, o mais das vezes sem credenciais adequadas, em crivo normativo das demais ordens de discurso.
Mas vou pedir que me desculpem a bravata que executo a seguir, causada, possivelmente, seja por uma confessada irritação atiçada por todos aqueles que, na primeira oportunidade que me veem, disparam: "quanto a seu livro amarelo, esse não é o nome dos livros do Kierk?", seja pela exaustão decorrente de produzir um livrão como o que meu leitor sustenta neste momento pesadamente nas mãos ou que mais confortavelmente repousa aberto sobre uma mesa, no exíguo prazo de alguns magros meses. Dizia, assim, que Kierkegaard parecia autoindulgentemente asséptico na sua defesa de um amor idealizante, e agora cometo a gafe de sugerir que isso se devesse talvez a um medo de amar de verdade, talvez a alguma forma de impotência ou abulia sexual... Qual o problema com os filósofos com a paixão (salvo Spinoza)? Por que a evitam como se fossem mais espertos por isso? Preveem covardemente a dor que nela se adivinha e por isso o evitam, como se fosse possível ou como se a dor não fosse uma experiência imanente ao estar-aí e, no mais das vezes, enriquecedora? O sofrimento é uma experiência humana incontornável, já ensinavam os buddhas, mestres do altruísmo e da compaixão e do amor incondicional à vida e a todas as formas de vida, tal como o é a experiência de nos sabermos mortais, e esquivar-se da paixão ou do temor da morte não nos torna mais sábios, apenas ainda mais pobres: nos priva de um conhecimento mais profundo de nossa natureza. Então que a dor venha, me humilhe, me estraçalhe. Não quero a sabedoria do mestre estoico, quero fortaleza!
Tudo isso simplesmente para insistir que a identidade dos nomes de meu livro e de sua trilogia se devem antes a uma convergência que a uma homenagem. Claro que, tendo lido os volumes de As Obras do Amor de Kierkegaard, o nome me pareceu inspirado e talvez tenha se armazenado no meu subconsciente, tendo revindo à superfície quando batizei este livro. No mais, desde a Antiguidade há obras nomeadas ou conhecidas segundo o mesmo título, tanto na ensaística quanto na literatura, e bem assim na pintura e escultura. E também é da tradição ocidental que autores produzam obras concêntricas a um mesmo assunto e dotadas do mesmo nome: quantos Banquetes vocês imaginam que foram escritos? Da minha parte, ainda prometo escrever o meu!
No entanto, em outro poema de minha pena, não incluído nesta coletânea, intitulado "A Procura", constante desse desconcertante volume místico a que me atrevi, intitulado "A Estrada das Sete Portas", faço meu personagem, um homem que foge do homem que tinha assassinado, dizer que o próximo a que Jesus nos admoesta a amar não é o nosso familiar ou amigo, mas o desconhecido, o inimigo que você matou, o mendigo desmunido de pão e de nome. Essa lição sobre a essência da compaixão sim, eu a devo ao Mestre Kierkegaard.
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