APRESENTAÇÃO



Por que Poemas de Amor?

A presente edição reúne todos os poemas de minha autoria que têm por objeto o amor. Estão divididos em partes que correspondem a certa perspectiva ou metáfora sobre o amor tal expressa no título do capítulo. Correspondem a um período de vinte anos de trabalho poético, o que talvez justifique o volume alentado do livro.

Quando comecei a escrever poesia, no início dos 90, cometer poemas “sentimentais” era visto como um sacrilégio contra as regras do então incensado cânon (o "neo-parnasianismo chique", na cunha do Paulo Leminski). Por isso, em meu segundo livro, como num desafio quixotesco à la Rastignac, resolvi me concentrar nos assuntos interditos, de matriz erótica ou política. A maior parte dos poemas aqui compilados pertence a esse período (2003-2006), mas prossegui escrevendo sobre esses assuntos, de maneira que o leitor também encontrará aqui peças recentíssimas. Claro que hoje não ousamos nos dar mais ao luxo de sermos ingênuos a ponto de sustentar que existam assuntos mais ou menos dignos da poesia, mas suspeito que os mesmos preconceitos subsistam, embora de forma menos ostensiva. Então o presente livro prossegue desafiador e a contra-pelo.



Razão, Emoção e Inspiração


Peirce, o fundador sa Semiótica, assere que toda percepção ou emoção se dá na forma de raciocínios hipóteticos (hoje diríamos no modelo da inferência da melhor hipótese), de maneira rigorosamente equivalente a todo o resto de nossa atividade consciente. Isso acabou corroborado pela pesquisa das neurociências dos nossos dias. Distinguir razão de emoção como opostos é de fato um equívoco, como está plenamente comprovado pelos recentes aportes experimentais. A emoção não é senão um modo de pensamento abdutivo em curto-circuito, que apenas se dá em nível inconsciente e automático. Nosso cérebro recebe uma cifra de milhões de informações a todo segundo e as processa racionalmente, mas tamanha é a riqueza desse tesouro de dados que somente sete ou oito peças de informação acedem ao patamar da consciência dita de acesso. Todo o excedente, bem como a memória meticulosa de tudo o que experienciamos, conforma a mina inesgotável do que os antigos chamavam intuição ou inconsciente.

Não existe boa poesia sem inspiração. A inspiração não é apenas a primeira dádiva com que as musas nos agraciam do alto, restando-nos, como afirmou Cabral, 95% de trabalho corporal. Em primeiro lugar, a inspiração nos vem de dentro, daquela infinita fonte subconsciente de sensações, conhecimentos e metáforas que de vez em quando nos surpreende com a força invencível de sua sabedoria e beleza. Em segundo lugar, se é verdade que um poema nunca nasce pronto de uma só vez, ele precisará da confluência de muitos outros momentos de inspiração, que vão se complementando até dar origem a um poema digno do nome. Escrever um poema inteiro sem o aporte de alguma inspiraçao ou completar a sua contribuição inicial com retoques feitos a mão seca, sem o motor da paixão, é ledo autoengano. Poesia escrita de modo automaticamente consciente nunca resultou em coisa de real valor artístico. Decerto um software com poderes combinatórios mais sofisticados e com um repertório maior que o nosso pudesse produzir coisa melhor. Com a perspectiva ganha com o afastar do tempo, podemos ainda atestar que o resultado estético é ainda pior quando a consciência se traveste de automatismo inconsciente, isto é, ao se valer de um apelo a um inconsciente falseado em consciente. A esse propósito, é curiosa a relação inversamente proporcional entre os aportes da poesia de manifesto para a história da arte e suas contribuições para a poesia propriamente dita. O dadaísmo, o surrealismo heroico e outros "ismos" pertencem mais à história da poesia do que à poesia propriamente dita. O valor artístico de suas contribuições foi praticamente nulo. Não espere encontrá-los numa boa antologia.

A conclusão é que a poesia corresponde exatamente ao que sempre intuímos a seu respeito, ou seja, à interação entre razão e emoção, a despeito das repetidas e frustradas tentativas de se reinventar a roda.



A Arte da Metáfora


Sou um polemista diletante e, já que nos enveredamos por esse caminho, por que não aproveitamos o ensejo para prosseguir martelando outros ídolos?

Pois, assim como não há diferença ontológica entre razão e emoção, a não ser o fato de esta ser somente fenomenalmente consciente e estar acompanhada de uma descarga hormonal graças à qual consegue nos levar a escalar prontamente uma árvore para que não sejamos devorados pelo leão que decidiu fazer seu passeio matinal por estas bandas, salvando-nos alguns segundos preciosos durante os quais estaríamos de outro modo calculando com nossos parcos recursos cognitivos conscientes a velocidade e a trajetória da fera, tampouco existe qualquer diferença metafísica, ontológica, semiótica, cibernética, linguística ou patafísica entre metáfora ou símbolo ou símile ou analogia. Há somente uma diferença sintática bastante secundária, como veremos adiante. Até Benjamin, no seu ensaio sobre o drama alemão, tentou discriminar as duas coisas: então o equívoco de fato parece renitente a ponto de merecer que o desfaçamos, mas para isso bastarão uns poucos apelos à consistência.

Toda linguagem somente pode operar como instrumento de comunicação porque está dotada de dois recursos geniais. O primeiro chama-se recursividade ou redundância. É a chave sintática da linguagem. Através desta somos capazes de produzir um universo ilimitado de elocuções a partir de um número limitado de regras e recursos. Cumprem tal papel uma gama de instrumentos como conectores, pronomes relativos, sufixos, afixos e via. Um exemplo particularmente lúdico da aplicação da redundância são os versos infantis sobre a ida ao mercado e suas variantes: "meu pai foi ao mercado e comprou um cachorro que tinha comido um gato, que tinha devorado um rato... ”.

O segundo recurso genial constitui a metáfora. Quem lembra do conto “Funes, o Mnemônico” de Borges, sabe que uma língua adamítica inteiramente construída com nomes próprios resultaria impraticável. Precisaríamos de uma palavra distinta para dizer cada cifra na série infinita dos números. Assim, poderíamos batizar o algarismo 333 de “ptxws”, e 67.897 poderíamos chamar “yy”, e, obviamente, teríamos de saber de cor toda a série para poder falar sobre números. Claro que na linguagem real utilizamos expedientes de redundância para nominar os números, derivando todos os seus nomes de alguns números primários. Não fosse isso, teríamos que dar um nome distinto a cada alfinete e a cada cadeira que existem ou já existiram no mundo. Essa em que você está provavelmente sentado, chamaríamos de “fofinha”, mas aquela em que você assistia às aulas da segunda série da escola fundamental não era nenhuma fofa, mas quem sabe “aiquesaudadesdaminhacaminha”, pois é sabido que as escolas fornecem assentos duros aos alunos justamente para evitar que adormeçam...

Felizmente, não é assim que a linguagem funciona. O coração semântico da linguagem é a metáfora. Por meio dela aplicamos um mesmo nome a uma série potencialmente infinita de indivíduos diferentes, seja porque compartilham uma forma ou uso comum (metáforas do subgênero “analogia”, assim, os objetos de sentar chamamos “banco” caso não tenham espaldar, se o possuam, serão ditos “cadeiras”), sua pertinência a uma família ou espécie natural (metáforas do subgênero “instância”, como ouro e passarinho), seja por uma comum referência indexical do tipo espaço-temporal (metáforas do subgênero “metonímia”, como "curitibano" ou "trintão"), seja enfim por força de uma regra arbitrária ou convencional (metáfora do subgênero “símbolo”, como “galo” para francês ou, se decidíssemos, e algum idiota já sugeriu, chamar “grue” o universo correspondente às coisas azuis antes de 1999 e somente a partir de então as coisas verdes). E é também desse modo que transcorre a vida das palavras, cujos significados se ampliam ou deslocam por relações de similaridade ou contiguidade ou de semelhança semântica ou sensual, de modo que hoje dizemos “botão” para as coisas que nas máquinas se apertam porque pareciam com os botões vegetais. Outro exemplo que me ocorre é a palavra “humus”- terra em latim, mas que em português passou a designar “adubo”.
O famoso símile não é senão qualquer metáfora dos tipos elencados acima, cujo emprego foi sintaticamente explicitado pelo uso de um marcador ou conectivo de similaridade (“como”, “como se”, “igual a”, “parecer”, “lembrar”, “semelhar”, “tal”, “que nem”, “tipo” e assim por diante), explicitação esta geralmente desnecessária (a não ser para fins de ritmo melódico ou contagem silábica) uma vez que o leitor, sendo um ser racional dotado das nossas mesmas faculdades semióticas e cognitivas, e, por conseguinte, tão experto na língua quanto nós, certamente prescindirá de tais muletas para compreender que quando dizemos que “a espada sangrou”, estamos implicando que ela feriu alguém e não que ela mesma tenha sido acometida de uma súbita hemorragia de modo que tivéssemos que abalar-nos em seu auxílio levando-a a um pronto-socorro.

O papel dos poetas é andar nas encostas dos abismos da linguagem, procurando descobrir metáforas novas e similaridades despercebidas. Através da poesia, a linguagem pode experimentar e se enriquecer. Se a poesia é a arte por excelência da linguagem, isso se dá essencialmente porque a poesia é sobretudo a arte da metáfora.




O Sono dos Dogmas Recebidos


O acaso me dotou do dom das línguas (e nem era pentecostes), de maneira que tenho escrito poemas simultaneamente em alguns idiomas. Com base nessa prática, posso testemunhar, contra a tese quineana da indeterminação radical do significado (assimilada mesmo que parcialmente pela tríade concretista), que os meus versos em co-versões e traduções compõem inegavelmente os mesmos poemas, malgrado expressos em códigos diferentes. Por isso concluo que poemas são feitos de ideias. E não fossem feitos de ideais, não seriam sequer comunicáveis entre dois falantes da mesma língua, aos quais decerto correspondem idioletos distintos. O uso sensorial do significante para efeitos rítmicos (rimas, aliterações, assonâncias e outros) é parte inafastável do manejo estético da linguagem, mas desde que seu abuso não estorve ou impeça o escopo da comunicação. Quando usados como fim em si mesmos, parecem-me desnecessários e supérfluos, ou talvez já não pertençam à esfera poesia, mas das artes visivas ou sonoras.

É ilustrativo que Cabral de Mello Neto, um valéryano campeão de certa terapia da poesia que o levava a defender a primazia do significante, a supressão da emoção e o banimento da metáfora, tenha justamente atingido seus momentos máximos apenas quando se deixou levar por um emotivismo altamente galvanizado (me refiro ao lindo “Morte e Vida Severina”) ou quando se inspirou e levou até as últimas possibilidades o uso de uma metáfora avassaladoramente brilhante (nos notáveis “Mulher e Casa” e “Tecendo a Manhã”). O resto é de uma repetitividade lamentável, salvo os seus livros de juventude, lindamente surrealistas. O próprio Drummond se deixou levar por esses preconceitos, felizmente após já ter escrito suas obras primas “A Rosa do Povo” e “Claro Enigma”, donde o tom insípido e anedótico de sua poesia posterior, que eu chamo jocosamente de “recepção drummondiana do patati-patatá cabralino”. Ao revés, aqueles poetas que não se permitiram conduzir por tais fórmulas assépticas, como Jorge de Lima, Murilo, Ferreira Gullar, Paulo Mendes Campos e o esplendoroso Lêdo Ivo, foram injustamente castigados com uma apreciação crítica subalterna. A poesia não precisa de terapêutica. A poesia precisa ser levada a sério.

Por razões próximas, tampouco acredito em poesia hermética. Um texto abstruso e impermeável fracassa como objeto de linguagem, cujo propósito é a entrega de uma mensagem. Todo texto é inevitavelmente polissêmico e se configura através da contribuição recíproca de emissor e recipiente. Isso é uma trivialidade. No entanto, ausentes quaisquer atributos passíveis de compreensão intersubjetiva, constituirá um mero ruído, carente do conteúdo que lhe permitiria ser objeto de algum juízo estético objetiva ou intersubjetivamente válido. Sem conteúdo acessível, estável ou não, como pode um texto oferecer parâmetros para uma apreciação crítica? Poupemos os leitores de tais engodos. Sejamos honestos. Sejamos claros. Ordem direta, sempre que possível. E, como ensinava Borges, evitemos os sinônimos preciosos quando tivermos à disposição algum termo mais comum e preciso.

Faço essas observações no exclusivo intento de repudiar qualquer discriminação entre razão e emoção, símile e metáfora, significante e conteúdo, arbitrariamente traçadas de maneira a privilegiar um dos extremos da dicotomia em relação ao outro. São inaceitáveis pelo simples fato de fundarem-se em superstições e na recepção acrítica de preconceitos desprovidos de qualquer embasamento lógico ou científico. Imagino que, a este ponto, tais questões já pareçam há muito superadas. Mas observo ainda certo viés de leitura “canônica” sendo correntemente praticado, mesmo que de maneira sub-reptícia. Assim, meus vários jeitos de escrever versos podem parecer estranhos a certos poetas e críticos, e espero a esse respeito que os esclarecimentos deste posfácio possam modestamente contribuir para ajudá-los a despertar do sono embrutecedor dos dogmas recebidos.



Mas Quem é o Verso, Afinal?

Os gregos diziam que a vocação de um poema é a de tornar-se memorável. Isso não perde o sentido só porque galgamos de uma tradição oral para o registro escrito e agora virtual das nossas composições. Um bom verso é como um meme, que fica zumbindo no ouvido a despeito de nosso desejo de atirá-lo ao poço do olvido. Na minha visão, num poema você pode contar uma história, dizer o que você ou outra pessoa pensa, passar uma receita de caruru, em suma, o que quer que seja, contanto que o faça através de um uso notável de palavras, seja pela sua acepção ou conteúdo insólito e/ou por seus aspectos sonoros ou sensuais notáveis. Cada unidade de ideias e palavras que compõem um tal texto chamamos verso, seja ele do tamanho que for. Importa é que sua qualidade extraordinária o torne particularmente idôneo a aderir à nossa memória, de forma a poder, por exemplo, ser posteriormente recitado com certa facilidade, no todo ou em parte, mesmo à falta de suporte escrito.

Memorável é aquele poema em que as ideais e o seu veículo, as palavras, estão ordenadas de um jeito que refoge à ordinariedade das formulações verbais que corriqueiramente usamos, e cuja rareza (e não necessariamente estranheza) os faz preciosos. Trazendo a metáfora aos limites de suas possibilidades, os versos renovam a linguagem e ganham, em troca, a memorabilidade. Os melhores poetas são, portanto, aqueles capazes de alcançar de modo inconvencionalmente frequente tais constelações incomuns (noto certo kantismo nesta última observação). E estas serão tanto mais surpreendentes, quanto mais paradoxalmente próximas da linguagem comum.

Por outro lado, como dizia o próprio Ezra Pound, o profeta dos moderníssimos, corroborando o que eu afirmei mais acima sobre a tão difamada inspiração, “só a emoção é o que fica”. A explicação neurofisiológica óbvia, se me permitem outra digressão à la fringe-science, é que a memória opera seletivamente através de critérios de emoção. Quanto mais avassalador um acontecimento, maior sua fixação; quanto mais banal, mais vulnerável ao esquecimento.

A maior prova de que uma arte que a toda hora uma nova cassandra declara morta prossegue sim-senhor bastante viva, e atinge inclusive o seu momento mais exuberante, é o fato de eu me divertir sempre mais com os meus contemporâneos do que com gênios que escreveram há duzentos ou trezentos anos passados. E, mais que todos, com os brasileiros. Talvez esse o lado positivo da estreiteza de nosso “cânon”: tornou escrever poesia mais difícil, e os poetas mais ciosos de qualidade. Sem dúvida, fizemos progressos fatais, os quais remoldaram ou esclareceram nosso próprio conceito de poesia, de sorte que podemos produzir lírica mais conscientes sobre a sua natureza e os seus limites, se os há. Claro que nisso jogaram papel central o redentismo dos românticos e o senso de experimentação e pesquisa dos modernos.

Mas por que não mencionar também a contribuição mais modesta e contudo igualmente fundamentalmente transformadora das inovações técnicas, as quais aumentaram os canais de expressão, como a internet, e que facilitaram a edição e impressão de textos? A esse respeito, eu, que participei da transição das máquinas de escrever para os processadores de texto, tenho bem presente a vantagem descomunal que os escritores de hoje têm devido à possibilidade ilimitada de ajuste e correção com que esses programas nos proveram, em confronto com os recursos indigentes como rabiscos no papel e mata-borrões dos antigos.



Sobre o Autor

Depois dessa defesa do amor e da liberdade de poder expressá-lo das mais variadas formas, cumpre frisar que o amor, quando eleito como assunto de um texto, não gera necessariamente poemas de cunho emotivo. Se não há limite entre razão e emoção, por que não poderia um sentimento ser tratado sob uma perspectiva racionalizante? Assim, aqui abundaram também os poemas cerebrais. Os apologéticos e os elegíacos. Os graves, a par dos sardônicos. E os eróticos, ao lado dos líricos. Poemas conceituais e triviais. Houve aqueles escritos em linha confessional, mas alerto que, como nos demais, tudo aqui é finto, e mais verdadeiro, justamente por isso. Ouvem-se poemas em outras vozes. Viris, homoeróticos e femininos. Versos em ritmo antiquado, e outros destrambelhados. Enfim, ofereci uma seleção de poemas para todos os gostos e nos mais variados estilos. Nunca me contentei em ser repetitivo: talvez só quando não restar nada a ser dito, a vida finalmente poderá ter início. Então, let's go! Por outro lado, se a vida só bastasse, não havia a arte...

Sou um humanista e adorador dos animais, e um realista pragmático intransigente. Acho Wittgenstein e Nietzsche dois perfeitos oligofrênicos, porém sou, como estes inconsistentemente se criam, um vitalista, mas sem ceder ao conformismo: "amor fati ma non troppo". Acredito justificadamente em justiça distributiva e nutro horror a todo tipo de relativismo ou irracionalismo que, sob a máscara da tolerância e indulgência, consente com as mais graves violações éticas e crimes contra a humanidade. Não acredito no "a-priori" sequer como licença poética, mas no acúmulo de explicações através do raciocínio hipotético controlado pela observação: mesmo os princípios de lógica aprendemos pela experiência fenomenológica com o mundo e estão sujeitos à revisão conforme avançamos no nosso conhecimento, como humilhantemente nos ensinou a física quântica. A verdade é uma dama difícil, demora para ceder qualquer pouquinho e sempre exige o percurso mais oneroso. Penso que as verdades parciais a que tentativamente vamos acedendo não são meros construtos, mas efetivas descobertas. Ficaria feliz pra caramba se houvesse uma vida depois desta e não fecho os olhos para a pletora de evidências a esse respeito, mas minha conclusão parcial vai provisoriamente pela negativa. Por isso vivo um dia depois do outro e a cada coisa dedico o carinho de que é merecedora por sabê-la irresgatável e única.

Concluí meu primeiro livro aos 21 sano. Então decidi viver para ter sobre o que contar. Eu e a poesia reatamos quando eu tinha 28, numa lua de mel em Berlim, e vivemos felizes durante alguns anos. Fui desempregado e poeta em tempo integral por outros tantos. No fim de tal período, a convivência se tornou insuportável (sempre os problemas de grana), e eu e a poesia nos separamos. Desde então, já há dois ou três anos, estávamos conversando apenas esporadicamente até que, no fim do último ano, uma espécie de surto maníaco me presenteou com mais dois livros, episódios dos quais também inseri nesta reunião.

Agradeço a todos os que me auxiliaram nesta empreitada. Dizem que favores só se pedem a amigos. Mas eu não sou nem de pedir favores, como não sei falar de coisas tristes. Então lhes devo minhas lisonjas em dobro, pois se esforçaram em ouvir através do meu silêncio. Parafraseando Proust, a vida intelectual é a parte mais eventuosa e rica na história de um homem, assim, devo estas linhas como também a maior parte de minhas alegrias e agruras aos meus tantos mestres, dos trágicos, Diógenes e Platão, passando por uma constelação de nomes que não caberia enumerar aqui, por razões de extensão e justiça, até chegarmos a meus habílimos colegas contemporâneos.

Aos que me desconheciam e agora me leem, espero poder oferecer algum prazer, lembrando que há vários tipos de prazer, como há várias camadas em nosso ser, e que não nada há de mais aborrecido e plano que um conviva permanentemente feliz. Um pouco de cada coisa deve ser aproximativamente a receita para uma dieta equilibrada. Em contrapartida, ficarei contente com as suas objeções e críticas construtivas ou nem tanto.

Quantos aos erros, me arrogo a sua propriedade inalienável e exclusiva, sublinhando que, embora seja tudo artifício em poesia viva, não beletrística, busca-se ecoar a língua oral verdadeira. Por isso, não esperem que eu ceda às regras da vetusta gramática de estilo. Ao contrário, me atenho aos modos reais de fala no português nacional, único, aliás, sejamos honestos, dotado de chances de sobreviver nos próximos séculos. Só me servi de ênclises pronominais quando soam bem na prosódia brasileira, ou de força jocosa, ou senão, por último, por licença poética, em razões de sonoriedade ou gestualidade. Como é sabido, tais regras de estilo aceitas acriticamente incidem no equívoco de desvirtuarem a fonética do português americano, constituindo em face deste um puro sistema de erros prosódicos e sintáticos. As ditas enclíticas em português brasileiro podem ser átonas, reduzidos ou tônicas conforme a tenção do falante e, portanto, é inconsistente forçá-las a caber num único conjunto de normas que acabaria moldando numa única fôrma coisas que são fonicamente distintas. Do mesmo modo, empreguei o pronome brasileiro "você" junto com correlatos pronomes pessoais dativos e acusativos e genitivos de segunda pessoa, tanto para evitar a ambiguidade com sujeitos de terceira pessoa, quanto sobretudo pelo fato linguistico inconstável de que é assim que falamos no Brasil. Também usei "você" com imperativos de segunda pessoa, pois os de terceira só empregamos quando queremos parecer formais. Mas escrevi muito poemas com "tu", que não uso de hábito na minha particular produção oral, seja para produzir peças que remandem à tradição, seja para conferir ao verso uma locução simplesmente mais estranhadora ou altaneira. Acredito que verbos como "custar, faltar, sobrar" e tantos outros são impessoais na regra gramatical dominante e mais legítima no Brasil. Usei pronomes possessivos indiferentemente de serem precedidos ou não de artículo, embora em Portugal a regra difira da facultatividade que a esse respeito comanda na variante do Brasil. Só me servi de vírgulas para separação de adjuntos adverbiais no intuito de evitar ambiguidades ou para inserir uma cesura no verso. Nesse tocante, seu uso sistemático não me parece obrigatório e talvez resulte mesmo equivocado empregá-los sistematicamente, pois terminam por poluir visualmente o texto de sinais diacríticos ilegíveis, imiscuindo pausas inexistentes na língua oral e desnessárias à recitação oral ou interior, a contrassenso da vocação declamatória de todo poema. Enfim, levando a termo meu tom polêmico, a dita gramática de estilo é tão patentemente defeituosa e inconsistente, seja no atinente à sua própria lógica (?) interna, seja em virtude de seu afastamento da prática genuína da língua falada ou escrita, que minha inclinação cientificista me impede de levá-la a sério.
Desde a cidade do Rio de Janeiro, aos 5 de março do ano de 2011 da Era Comum.

P.S. Há uma famosa trilogia de Kierkegaard que também se chama "As Obras do Amor", e que são um clássico da Filosofia do Amor. Li-as jovenzito, e me pareceram egoisticamente carolas e platonizantes, a despeito de todo o seu louvor ao altruísmo. Explico a seguir detalhadamente por quê. Definitivamente, não é esse o tipo de abordagem privilegiada nestes meus textos, que celebram todas as formas do amor, seja o erótico, seja o filial, seja o caritário, sem privilegiar um em relação aos outros, a um tempo erguendo-o como o único amor "de verdade", e denegrindo por conseguinte os demais a formas sujas, imanentes à nossa animalidade ou configuração genética e, por isso, menos "humanas". A essas alturas, as neurociências já comprovaram que o altruísmo também está gravado em nossos genes, assim como no de incontáveis outras espécies animais, de modo que o altruísmo não pode sequer ser sustentado como unicamente humano ou racional ou cultural ou civilizatório, de modo a marcar uma fronteira que eticamente nos colocasse acima da natureza e seus fatalismos.
Minha leitura dos filósofos é filosofante, e não me interesso minimamente por uma História da Filosofia do tipo "quem foi, onde viveu, que influências pessoais teve": nunca procuro especular sobre as intricadas vinculações existentes entre um ensaio filosófico e a biografia de quem a escreveu. Nesse ponto, sigo com um grão de sal a ordem derridiana radical segundo a qual "il n'y a par de hors-texte". Com ela concordo parcialmente, pois também é verdade que não há texto que ressoe desde um vácuo sem contexto. Mesmo assim, a máxima me previne de viajar em especulações psicologizantes inúteis. Não sou filólogo, só busco nos filósofos o que objetivamente pode ser útil na solução dos novos e velhos problemas dessa disciplina parasítica, a Filosofia, que carece de discurso próprio e que se alça, o mais das vezes sem credenciais adequadas, em crivo normativo das demais ordens de discurso.

Mas vou pedir que me desculpem a bravata que executo a seguir, causada, possivelmente, seja por uma confessada irritação atiçada por todos aqueles que, na primeira oportunidade que me veem, disparam: "quanto a seu livro amarelo, esse não é o nome dos livros do Kierk?", seja pela exaustão decorrente de produzir um livrão como o que meu leitor sustenta neste momento pesadamente nas mãos ou que mais confortavelmente repousa aberto sobre uma mesa, no exíguo prazo de alguns magros meses. Dizia, assim, que Kierkegaard parecia autoindulgentemente asséptico na sua defesa de um amor idealizante, e agora cometo a gafe de sugerir que isso se devesse talvez a um medo de amar de verdade, talvez a alguma forma de impotência ou abulia sexual... Qual o problema com os filósofos com a paixão (salvo Spinoza)? Por que a evitam como se fossem mais espertos por isso? Preveem covardemente a dor que nela se adivinha e por isso o evitam, como se fosse possível ou como se a dor não fosse uma experiência imanente ao estar-aí e, no mais das vezes, enriquecedora? O sofrimento é uma experiência humana incontornável, já ensinavam os buddhas, mestres do altruísmo e da compaixão e do amor incondicional à vida e a todas as formas de vida, tal como o é a experiência de nos sabermos mortais, e esquivar-se da paixão ou do temor da morte não nos torna mais sábios, apenas ainda mais pobres: nos priva de um conhecimento mais profundo de nossa natureza. Então que a dor venha, me humilhe, me estraçalhe. Não quero a sabedoria do mestre estoico, quero fortaleza!
Tudo isso simplesmente para insistir que a identidade dos nomes de meu livro e de sua trilogia se devem antes a uma convergência que a uma homenagem. Claro que, tendo lido os volumes de As Obras do Amor de Kierkegaard, o nome me pareceu inspirado e talvez tenha se armazenado no meu subconsciente, tendo revindo à superfície quando batizei este livro. No mais, desde a Antiguidade há obras nomeadas ou conhecidas segundo o mesmo título, tanto na ensaística quanto na literatura, e bem assim na pintura e escultura. E também é da tradição ocidental que autores produzam obras concêntricas a um mesmo assunto e dotadas do mesmo nome: quantos Banquetes vocês imaginam que foram escritos? Da minha parte, ainda prometo escrever o meu!

No entanto, em outro poema de minha pena, não incluído nesta coletânea, intitulado "A Procura", constante desse desconcertante volume místico a que me atrevi, intitulado "A Estrada das Sete Portas", faço meu personagem, um homem que foge do homem que tinha assassinado, dizer que o próximo a que Jesus nos admoesta a amar não é o nosso familiar ou amigo, mas o desconhecido, o inimigo que você matou, o mendigo desmunido de pão e de nome. Essa lição sobre a essência da compaixão sim, eu a devo ao Mestre Kierkegaard.






Tuesday, April 24, 2012

PREGUNTAS DE AMADOR


Pido permiso
para preguntarles un ratito 
por que Amor, 
que se había jurado tamaño, 
terminado el encanto,
cuando nos dejó a solos los dos, duró
menos que el dolor 
que detrás de si dejó? 
Por que Amor, 
que se demostró tan fuerte,
y nos dominó contra o en favor
de nuestra voluntad impotente, 
y se quiso mayor que la propia muerte,
visto más de cerca, cuando eran cuentas hechas,
nos pareció más débil que la paz que nos hurtó,
más pequeño que la vida y un simple siervo de la suerte?

Por que Amor, que se decía mucho, 
o por lo menos se tenía por bastante grande,
por deslice o descuido, 
porque nada astuto,
o por exceso de temor, 
porque sin recursos,
se acabó tan diminuto
e aunque más frágil que antes? 
Y un padre generoso, 
que todos se esconden,
hijo del hombre en que nos tornamos poco a poco, 
sin que le pongamos atención, todavía nos responde:
que sólo porque fuera débil y no eterno,
es que Amor ha podido crecer para después tumbar enfermo,
tal como debe nacer sin gloria un dios encarnado
o como al fin suele morir un héroe trágico. 
Pues solo porque amor fuera tan poco,
es que ha podido guardarse para quedarse más un poco,
intentando a despecho del diente del tiempo 
lograr a ser duradero.
Y sólo porque era tan chiquito y medido, 
es que ha podido nos dejar fuertes de tan locos. 
Y sólo porque fuera siempre tan vacío, 
es que Amor se puso más que lleno: infinito. 
Simplemente porque estaba hecho, como nosotros,
de la misma materia con que se hacen los días,
es que Amor ha llegado a ser poco a poco
más de lo que jamás sería. Y, después 
de nos quemar y dejar de arder, 
nos sorprender renacidos 
de las cenizas frías,
otra vez encendidos, quién diría!

Y porque cuerpo, era hecho de carne e de engaño,
de gestos e de medios, 
e palabra que yo apenas no sabría.
Y también era mixto de hálito dulce e arcilla recocida.
Un tanto tarde, un tanto temprano. 
Parte noche, parte día.
Y así, a medio acero y a medio miedo, poseía
tanto honor cuanto desprecio, precipitación y sabiduría.
Y, por lo tanto, si un día
se ha ido,
no se fue porque jamás hubiera existido:
se ha ido 
simplemente
porque también ha siempre sido
como la gente,
una cosa así viviente.